Atenas: mutucas, boi e Body

Hoje estreia Atenas: mutucas, boi e Body. Processo longo e intenso que agora se apresenta ao público. Aqui, os afetos, as parcerias, o aprendizado, a superação, a luta. Teatro da vida. Teatro NA vida. Na veia onde o canto tágico se encontra com o canto do bumba-meu-boi. Eis um trecho dessa escrita dramatúrgica que dividi/experienciada/lavrada com meu grande parceiro Lauande Aires. "Atenas! Atenas! Atenas! outrora cidade, agora, apenas"
MUTUCAS
Da última vez a chama nos consumiu ...
Tábua por tábua, a vila era mastigada ...
O mar se retraiu e o fogo que surgiu
Avançou feito sol pleno em madrugada
E mesmo com as labaredas diminuindo
A brasa insone ainda nos vigiava, zunindo
A flama, baforando, olhava-nos, a mugir
Olhos famintos, prontos a tudo engolir !





O Urubu de Caras-Pretas



Em Caras-Pretas a dramaturgia é construída a partir de fatos históricos da Balaiada - revolução popular do período Regencial. Porém, para quebrar o curso linear da história e, também, por não ser possível retratar tudo no formato de peça, optei por criar cenas ficcionais cujo mote sintetizasse todo o contexto e criasse situações que, por serem um tanto absurdas, deslocasse o leitor e o fato histórico do tempo e do espaço. 
Aqui, Raimundo Gomes e Chico acham um cadáver de um soldado desertor no meio do sertão. Ao vê-lo prestes a ser devorados por urubus, eles decidem levá-lo para o Juiz de Paz (uma espécie de coronel) que é o "urubu certo", ou aquele que deve dar conta dos cadáveres - vítimas do recrutamento forçado. 
Ah! E havia um jargão nessa época que era: "está fedendo a carniça" - que denunciava o clima de descontentamento com as injustiças do governo. Daí surgiu o insight de colocar um ato inteiro em função do traslado de um cadáver .

Esse é o trecho do final do Fragmento II do 1° Ato.  
As ilustrações são de Waldeir Brito


FRAGMENTO II
O PACOTE

JUIZ DE PAZ e um MEMBRO DO PARTIDO CONSERVADOR CABANO.
Escritório. Uma mesa. Duas cadeiras.   

(...)


JUIZ DE PAZ. E o que vais fazer, seu infame? Invadir a cadeia no meio da noite e libertar os bandidos?
RAIMUNDO. Pelo contrário! De manhã estarei lá, eu e meus homens! Vamos libertar os nossos companheiros por bem ou por mal!
JUIZ DE PAZ. Não és capaz de tanto! Não passas de um vaqueiro contra minha tropa armada! És apenas um fanático no meio dessa terra cheia de cacto! Não tens o poder para agitar nem o lagarto mais tapado, não sabes ler, nem escrever, não tens o dom da palavra para convencer os demais...
RAIMUNDO. A palavra não vale de nada. Para seus abusos de força a única prosa que se pode levar é a do chumbo grosso! O recado foi dado! Tome ciência! Vamos embora, Chico!
CHICO (apontando para o defunto). Mas e o ...
JUIZ DE PAZ. Aonde pensas que vais! Tire essa carcaça fétida da minha frente!
RAIMUNDO. Dê cabo dele, Juiz de Paz! Ele é um dos seus soldados! Devore-o!
JUIZ DE PAZ. Me toma por um urubu para comer cadáveres?!
RAIMUNDO. O bicho, coitado, não tem culpa de ser carniceiro. Na verdade, a ave faz mais parte da limpeza do que na sujeira. Ela come o que está podre. Limpa o ambiente. Os bichos se entendem, de uma forma que nós não compreendemos. Nascem assim: já entendidos da vida. Não são aberrações. Coisa monstruosa é o homem que homem nasce e vira urubu. Não come o que está estragado ou morto. Não limpa nada. Sequer voa. Alimenta-se do pouco que os outros têm. Nutre-se do resto das almas e descarta o corpo em errante existência. Rumina a podridão que cria. É urubu da pior espécie de urubu: urubu de espécie humana. Existe coisa mais bizarra do que isso?
JUIZ DE PAZ. Falas coisa com coisa, analfabeto!
RAIMUNDO. Resumo: faça o justo proveito daquilo que causou: mastigue esse homem, engula-o, assuma-o. Eu já me vou. É tarde. A cortina do dia se fecha. É quase noite. Vamos, Chico. Deixemos o homem jantar em paz.   
RAIMUNDO e CHICO saem.
O MORTO fica.
JUIZ DE PAZ. Eu por acaso tenho cara de São Pedro pra cuidar do destinos dos mortos?! Agora eu vi mesmo!  Todos irão para cadeia! Fiquem sabendo! (Sai em direção à coxia, por onde RAIMUNDO e CHICO saíram) É uma ordem! Tirem esse morto daqui! (O MORTO cai nos pés do JUIZ DE PAZ) Me solte demônio do Satanás! Isso também é uma ordem, ouviu! (Tenta se desvencilhar do defunto) Está mais duro que uma garra de ferro! Alguém me traga uma ferramenta! Uma marreta! Uma estaca! Rápido! Desprendam esse indivíduo do meu pé! (Sai de cena arrastando o MORTO) Aí carniça, como estás fedendo! !
O JUIZ DE PAZ sai de cena arrastando o MORTO, o qual, mesmo defunto, aparenta ter esboçado no rosto um pequeno sorriso, diminuto, mas expressivo. 



MONÓLOGOS CRUZADOS EM "AS TRÊS FIANDEIRAS"

            Em As Três Fiandeiras, realização conjunta dos grupos Petite Mort - Zona de Arte  e Xama Teatro, agora em circulação pelo Sesc Amazônia das Artes 2017, há essa cena chamada de Apresentação das Rendeiras. São monólogos cruzados cujo objetivo é criar uma harmonia temática e conexões entre uma réplica e outra. Não há um contato entre um personagem e outro, mas o temas, maridos, vila de pescadores, renda e filho se entrecruzam, formando uma malha que é  serve como exposição para cada personagem. 



ZEZÉ. Meu marido morreu. Foi por causa de uma espinha de peixe! Aconteceu assim: de repente. Quando dei por mim, o homem já estava se debatendo todinho no chão...
CHICA. Se eu tenho filhos? Sete!Janderlei, Jandaederson, Jandaerson, Jandaeldison, Jandailson, Janderlei eu já disse? Janderlago e, pra terminar, tem o Ribamar...
DAS DORES. Sim, sim, faço renda. Aprendi com minha mãe, que era mulher de pescador, que aprendeu com minha avó, que era mulher de pescador. E quem que não é mulher de pescador aqui nesta vila? Não tem um arquiteto!
CHICA. Cada um desses meninos se enrabichou por rabo de saia e se tacaram no mundo, exceto Ribamar, que tem só 15 anos...
DAS DORES. Eu sou mulher de pescador. Ele ia pro mar, eu fazia renda. Ele se foi com mar. Eu continuo aqui fazendo renda... Fazer o quê? É uma maneira de costurar as lágrimas...
ZEZÉ. Certo dia ele apareceu na praia. Atordoado, o homem, que só vendo. Levei pra benzedeira. Sabe o que era? Canto de sereia! Ora se eu vou acreditar numa marmota dessa, eu, Zezé, vividinha da silva do jeito que eu sou?! Isso estava era com piranha, que eu sei! 
DAS DORES. Quando não estava no bilro, estava tratando de peixe. Quando não estava tratando de peixe, estava pegando o diabo do homem no bar...
CHICA. O pai do Janderlei, Jandaederson, Jandaerson, Jandaeldison, Jandailson,Janderleieu já disse? e do Janderlago; já morreu. O pai de Ribamar: uma mulher levou!
DAS DORES. Passei tanto tempo sendo flor para os outros que quando dei por mim não dava mais tempo de ser rosa...
ZEZÉ. Ele não gostava de peixe... Nunca gostou... Só comia por que ficava esquisito um pescador não comer peixe...
DAS DORES. Quando ele chegava em casa, bêbado, dormia feito uma pedra... E eu, ali do lado dele, me debatia à maneira dos limos...
ZEZÉ. Dizia ‘Peixe não enche bucho, mulher’...
CHICA. Homem é que nem bicicleta, se desgrudar o olho vem uma outra e sai pedalando...
DAS DORES. Um dia ele foi inventar de levantar a mão para mim. Ah mas não deu certo!...
ZEZÉ. E olha como o destino é caprichoso: ele morreu engasgado justamente com uma espinha de peixe!
DAS DORES. Expulsei de casa. Mandei ir embora. Ele saiu fugido pro rumo do mar, porque, se ficasse, ia levar uma surra...
CHICA. O Ribamar, meu filho mais novo, desde pequeno, cisma em ir pescar em alto mar. Eu não deixo! Nunca deixei! Porque se pescasse ia ser pescador e pescador não pode ver um rabo de saia que larga tudo de mão!
ZEZÉ. Sabe o que ele me disse antes de morrer? Você não vai acreditar...
DAS DORES. Descobri, no outro dia, que o barco dele tinha alagado. Deus o tenha, se o Diabo não tiver carregado.
ZEZÉ. Bem feito para cara dele!
CHICA. Outro dia encontrei o pai dele. O coitado me pediu para voltar, que eu era o amor da vida dele. Eu voltei! Voltei pra ver se Ribamar tirava da cabeça essa ideia de mar...
DAS DORES. Eu ficava olhando pro mar. Quem sabe ele não volta para pegar as coisas que deixou. O mar tem dessas coisas. É uma boca enorme que, de vez em quando, cospe fora o que comeu. O pobre do homem era uma dessas carnes ruins. Aquela que a gente mastiga, mastiga, mas não consegue de engolir.
CHICA. Não adiantou... Ribamar embarcou mesmo assim, faz três dias... E eu fico assim, olhando pro mar... Que o santo cuide do meu menino...
ZEZÉ. Ele disse pra mim, alto e bom som: ‘Zezé, vou morar com outra!’...
CHICA. Ribamar? Ribamar me ajuda aqui na loja. Ele não gosta de jeito nenhum. Vai na marra...
ZEZÉ. Nisso que ele disse ‘vou morar com outra’ ele engasgou...
DAS DORES. Não sei se Fugêncio ia ter coragem de me bater...
ZEZÉ. Eu perguntava “Qual o nome dela?”, e o sem-vergonha me dizia “Aua, Aua”, “O quê? Aura? Isso lá é nome de gente?!”, “Aua, aua”, “O que, Alma?! Tu vai me trocar por um espírito?! É isso?!”
CHICA. Até hoje eu acho que, se Fuginaldo estivesse aqui, Ribamar não tinha ido pescar. Mas ele foi! É teimoso que nem uma mula, esse menino!
ZEZÉ. Quando eu percebi que ele estava engasgando comecei a bater na costa dele! ‘Desembucha, diabo! Desembucha!’ Ele dizia ‘Che... Che... Che...’ e eu ‘Sheila de quê?’ E ele ainda engasgado ‘ga... ga... ga..’, e eu ‘Gaga? Sheila Gaga? Eu não conheço nenhuma Sheila Gaga, Fujâncio!...
DAS DORES. Mas se levantou a mão é por que pensou, e ‘todo penso é torto’...
ZEZÉ. E não que pra azar dessa miséria ele foi cair em cima da faca que eu estava cortando peixe naquela horinha mesmo?! Daí ele caiu no chão e ficou se debatendo tipo peixe em cima da faca, pra cima e pra baixo, pra cima e pra baixo e se furou todinho! E eu fiquei desolada. Fiquei acabada, meu Deus! E desde então, tenho essa Sheila Gaga engasgada aqui na garganta.
Ouve-se um barulho. Alguém bate duas vezes na porta, fortemente. 
CHICA. O que foi isso? É Ribamar! É Ribamar, eu tenho certeza! Graças a Deus!
Zezé e Das Dores olham para Chica. Os olhares se encontram.  Uma perda transborda.

CHICA. Não Zezé, não Das Dores... Ribamar, não! Ribamar, não!

ARRANHOS





Gosto quando teu toque em arranho se verte,
Marcando-me as costas como se quisesse
Arrancar pedaço e selar cicatriz...

Gozo do rasgo: gosto que me partas
Maltrata esta carnadura que anseia
Trato feroz do dedo tornado em lâmina.

Crava de vez tuas garras, abre, cunha ferida!
E no corte recém feito à pele que exclama
Afoga a sede da carne, mata a fome da unha!

IGOR NASCIMENTO
02/02/2016

LANÇAMENTO CARAS-PRETAS

O objetivo do livro CARAS-PRETAS é dar voz a aos protagonistas da Balaiada, personagens que ficaram perdidos no tempo e não tiveram a chance de deixar os seus depoimentos. A História Oficial difundiu apenas a versão do repressor, cabendo ao escritor procurar outras fontes como dissertações de mestrado e teses de doutorado recentemente publicadas. A Balaiada foi uma Revolta de cunho popular que estourou em 1838. Ela fez parte das Revoltas do Período Regencial (Sabinada, Cabanagem, Guerra dos Farrapos, Revolta dos Malês entre outras) e tem como principal móbile o Recrutamento Forçado para o Exército brasileiro e as injustiças sociais decorrentes do excesso de autoridade dos Juízes de Paz. O poema de Estevão Rafael (jornalista e poeta da época) que vale a pena citar aqui:

Companheiros, enlutai-vos:
Passou a lei dos prefeitos;
São comandantes gerais,
Porém ainda mais perfeitos
Bem tristes, bem desgraçados
Vão ser os nossos costados

Ferverão rodas de pau,
Gonilhas vão renascer;
Duras algemas, e cordas
Nossos pulsos vão prender.
Bem triste, bem desgraçados
Vão ser os nossos costados!

Calabouço escuro e feio,
Pesados troncos, grosseiros
Prenderão talvez para sempre
Milhares de brasileiros!
Bem triste, bem desgraçados
Vão ser os nossos costados!

Filhas, esposas, e mais.
Chorai nossa triste sorte.
Não sei, se melhor seria
Gozar repentinamente morte!
Bem tristes e bem desgraçados
Vão ser os nossos costados !

Espera-se que esta obra seja uma porta de entrada para todo esse universo histórico, incentivando a busca por estes dados perdidos e inspirando novas pesquisas. Da mesma forma, protagonizar negros e mestiços que compuseram a Balaiada gera o fortalecimento da identidade étnico cultural, bem como a valorização dos interiores do Maranhão que foram os principais palcos deste processo revolucionário

IRINA-TEASE


Quarto com suíte do casal Irina e Almir. Eles tem mais de 30 anos de casamento. Ele é engenheiro – não se aposentou, mesmo tendo idade para isso. Irina, por outro lado, se aposentou. Era professora, gostava de lecionar, mas achou que era hora de parar. Decidiu abrir seu mundo para outras atividades. Pinta, escreve, faz hidroginástica, pilates e, ultimamente, tem aulas com uma sensual coach.  
Irina está dentro do banheiro.  Irina se apronta: ela fará um strip-tease para o marido. Porta um robe de seda, debaixo dele, uma lingerie sexy: um espartilho com cinta liga e calcinha fio-dental. Todo seu corpo sustentando por um salto alto 15 cm.
A porta do banheiro encontra-se entreaberta. Um barulho vindo da sala. Irina fecha a porta e dá os últimos retoques antes de se apresentar.


IRINA para o chão. Depois de fechar as portas da casa ele põe as chaves em cima da mesa de centro. Vai até a geladeira. Abre. Pega um litro d’água. Vai até a bancada da cozinha. Toma um comprimido de losartana potássica 50 mg, um suplemento vitamínico, outro suplemento de mineral: zinco, cálcio e magnésio. Põe o copo na pia. Põe de volta o litro na geladeira e ...  

Almir entra. Usa um pijama velho, rasgado em algumas partes.

ALMIR. Irina, ainda está aí?

IRINA para a porta. Hoje ... De hoje não passa...

ALMIR. Irina?

IRINA para a porta. Essas aulas tem de servir para alguma coisa ... A cadeira ... A lingerie ... Cabelo preso para depois soltar ... Salto alto ... Permanecer na ponta do pé para perna ficar mais torneada ...    

ALMIR, batendo na porta. Irina? ...

IRINA. Espera só um minutinho!

ALMIR. Não, eu não quero entrar não. É que a gente te chama e tu não responde...

IRINA para o espelho. O que falta ainda? Respira, Irina. É agora ...

ALMIR. Irina?

IRINA. O que é?

ALMIR. Responde mulher!

IRINA. Já respondi!

ALMIR. O que tu tem? ...

IRINA para si. Será que ele vai gostar? Será que ... Tem algo diferente... Estou esquecendo alguma coisa? ...

ALMIR. O que disse?

IRINA. Nada! Nada!

ALMIR para o público. A mulher anda falando sozinha...

IRINA. Almir?

ALMIR. Oi!

IRINA. Com quem fala?

ALMIR. Com ninguém!

IRINA. Bem, eu tenho algo para ti... (com uma voz mais sensual) Eu tenho algo para ti ...

ALMIR. Está doente?

IRINA. Estou assanhada ...

ALMIR. Se já vais dormir não tem problema!

Irina para no meio da intenção.

ALMIR para o público. Eu não entendo essa coisa que mulher tem com cabelo. O que Irina já gasta com isso... Dá uma parcela de um carro só de cabelo.

Almir liga a TV e se deita na cama.

IRINA para as paredes. O que ele vai dizer? Como vou explicar? Que agora estou tendo aulas com uma profissional do sexo, quer dizer: com uma profissional do ramo do sexo; quer dizer: uma profissional do rumo do sexo? Qual é mesmo a profissão de Regina? Que importa! Lá está ele, na cama. Assiste TV. Canal de esportes. Vê por ver. Às vezes dorme vendo um atleta correr até não sobrar mais fôlego. Eu desligo porque tudo isso me deixa tensa... Ele não. É como se tanta gente se contorcendo, fazendo força, gritando, se rasgando; fosse relaxante. (Abre a porta devagar e espia por uma brecha) Olhem lá, lá está ele. E com o mesmo pijama. Todo rasgado. Já comprei um novo, novinho, mas ele prefere esse todo molambento. Homem sem jeito. Sempre foi o mesmo. Ultimamente tem sido mais o mesmo do que nunca.

ALMIR. Irina?

Irina fecha porta, rápido e silenciosamente. Entra dentro da concha, medrosa, ensimesmada, encolhida.

ALMIR. Já estou preocupado com tanta demora. Isso não é normal, Irina. Vamos, sai daí ou me diz o que está acontecendo.

IRINA, num rompante. Só saio daqui se trocares de roupa!

ALMIR. ?!

IRINA. Sim, ou trocas de roupa ou nunca mais apareço!

ALMIR. Agora fiquei sem entender...

IRINA. Ou troca esse pijama rasgado ou não saio daqui!

ALMIR. Que história é essa, Irina?

IRINA. Falo sério. Ou trocas esse pijama sujo, esburacado, ou eu me desapareço. Ligo o chuveiro elétrico, ponho na temperatura mais quente e vou me embora com o vapor, me esfumo, me esfumaço!

ALMIR. Se virares vapor riscas de vazar pela fresta da porta e voltar para cá...

Irina liga o chuveiro. A água cai em alto volume.
ALMIR. Tá!

IRINA. O quê?

ALMIR. Eu disse “tá”!

IRINA. Vais ....

ALMIR. Vou trocar esse pijama. É tempo mesmo.

Almir tira o pijama.

IRINA para o chuveiro. Será que ele vai mesmo tirar o ...

ALMIR. Pronto: tirei. Agora, por favor, sai daí.

IRINA. Eh ... É ... Um instante...

Irina tira o roupão. Se arruma no espelho. Prende o cabelo. A alça do sutiã cai, ela repõe. A cinta-liga desprende. Ela tenta prender. Sem querer, vê no espelho a etiqueta do espartilho. Tenta tirar. Se atrapalha com o salto alto. Tira o salto. Senta no vaso sanitário, tentando tirar etiqueta que não sai.

ALMIR. Onde está aquele pijama que tu me deu?

IRINA. Não, não, não: me espera!

ALMIR. O pijama novo... Diz... Sabe que eu não sei achar essas coisas... Elas somem assim, do nada...

O vapor de água quente toma conta do banheiro. Irina está descabelada, desarrumada.

IRINA. Espera!!

Irina tira toda a lingerie rapidamente, quebrando, inclusive, alguns os fechos do sutiã e do espartilho.

ALMIR. Achei! Não precisa mais não!

Irina, nua, abre a porta do banheiro. Almir, nu, vira-se para ela.
Sem pegar o pijama novo, ele fecha a porta do guarda-roupa e vai ao encontro da esposa.  
A luz cai
O pano cai
Os lençóis franzem.


Igor Nascimento

05/12/2015

IRENE: DIA SIM, DIA NÃO


A morte de Irene caiu numa data qualquer, num dia de nada, sem festa, nome de herói nacional, santo católico ou tragédia memorável. Era uma quarta-feira e ela veio a óbito no meio da tarde... Lembro também que, nesse dia, nenhum evento mereceu destaque nos jornais. À parte os escândalos políticos em andamento - já sem tanta novidade ou alarde - ou aqueles crimes de sempre, dramas da rua e da vida que não são capazes de parar o trânsito ou cancelar os voos... O que de fato aconteceu de diferente a tudo isso foi o derradeiro suspiro de Irene. Porém, a morte dela se reportava apenas aos seus entes mais próximos. Para mim, sim, aquela foi uma ocasião com data fixada: tal fato aconteceu, em tal hora, em tal lugar, de tal jeito com consequências tais que o dia seguinte nunca acabou: nascia de alvor murcho, desaparecia em ocaso inerme. Sem diferença entre começo e fim era como ... era como se o tempo não achasse um presente para se assentar, sabe? Era como se as horas tropeçassem antes de marcar um horário específico... como se os minutos despencassem num abismo e seguissem em queda infinda sem nunca achar o chão, sem mais avançar, apenas caindo, caindo, caindo a esmo; e, à força de tanto cair, eles não saiam do lugar: sumiam nesse buraco que se abriu no dia em que Irene se foi...
Nesse intervalo, o passado ganhou vida própria. Gradativamente, ele tomou o espaço. Tudo estava encharcado de lembrança e na casa, liquefeita, eu não achava nenhum lugar para ficar. De todo canto brotavam gotas com a imagem dela. Molhavam o assoalho, infiltravam-se nas paredes, escorriam pelos os móveis. Eu tentava mergulhar nessas imagens, mas inútil: não se nada dentro de uma gota. A única coisa que cabe dentro de uma gota são as nossas visões... E eu estava no mesmo lugar, ilhado no mesmo dia. As datas passavam, sim, mas o dia era o mesmo, tenho certeza. Porém, quando o calendário veio parar em 17 de Outubro, algo diferente aconteceu: nessa precisa data Irene morre... A partida dela volta.  O tempo, em vez de avançar um dia, me retorna esse. E o dia seguinte ao 17 de Outubro é um amanhã intermitente que aguarda esse ontem se avultar, pois, desde que foi embora, Irene morre um dia sim e outro não.
Igor Nascimento
27/11/2015

Em Caduco ou Crônicas do Esquecimento

Ao Astro-Rei Solis





De dia, o sol se impõe diante dos homens: é todo céu. De cima, espicha e amassa sombras a bel prazer... A calçada em concreto e as ruas de negrume asfalto choram seus vapores há muito idos. Mesmo as horas dilatam, esbaforidas, até se aproximar a noite: só nesse instante o astro, sorvido pela linha do horizonte, oferece trégua ao mundo. Porém, prestes a retomar os laços sem-fim do universo ele se impõe, uma última vez, aos nossos olhos. Rasga terra e céu, borrando de luz as nuvens e tingindo a abóboda terrestre de cores parturientes. Em espetáculo soberbo ele se despede. Poente, entrega-se, por fim, aos sussurros das outras estrelas.


Igor Nascimento
22/11/2015

O DRAMA DE NARCISO


            Ao olhar seu reflexo na lâmina d'água, Narciso intui:

- Este sou eu.

Para constatar se de fato o era, Narciso toca a ponta do nariz. A imagem faz o mesmo. Ele pondera, surpreso:

- Este, realmente, sou eu!

Curioso, ele tenta tocar levemente seu reflexo. Ao triscar a ponta do dedo na água, seu rosto se desmancha em pequenas ondas. Decepcionado, conclui:

- Este não sou eu...

As águas se alinham, novamente. E lá está, refeita, a imagem de Narciso: refletido tal e qual. Ele pensa, sem esperanças:

- Esse... bem... esse não sou eu...

Para constatar se de fato não o era, Narciso toca a ponta do nariz. A imagem faz o mesmo. Ele exclama:

- Esse sou eu, realmente!

Emocionado, ele toca o espelho d’água. Sua imagem se distorce em mil ondas. Narciso, desesperado, se pergunta:

- Pra onde eu fui?

Em Caduco ou Crônicas do Esquecimento

Igor Nascimento

07/11/2015

O SÚBITO SUMIÇO DE ASTOLFO, O LOBISOMEM


Era de manhã e Astolfo não tinha voltado a ser homem.  Ainda tinha forma de lobisomem. Algo deu errado. Geralmente, depois dos acessos de lua cheia, ele voltava ao normal. Em algum lugar, de repente, ele acordava, confuso, nu e sujo; um trapo de homem, mas homem de carne e osso. Porém, ineditamente, naquele dia fatídico, continuava bicho, e com um agravo: não sei por qual razão ele se reconhecia como tal. Quando estava metamorfoseado, não tinha nenhuma consciência. Saía de si. Possuído por não sei qual lunar torpor, era todo respiração, fome, pelo, mandíbula e uivo. Porém, dessa vez, não foi assim. Era de manhã e a luz do dia saturava de cores sua visão, habituada ao preto-branco da noite. Os odores invadiam suas narinas e traziam o nome vapórico de tudo que estava ao redor. Os ouvidos giravam, como parabólicas, captando o sinal de cada objeto que se mexia, ali ou algures. Astolfo, extraordinariamente, raciocinava, permanecendo, ainda, lobisomem. Pena acordar para razão no instante em que ela não é capaz de explicar bulhufas. Ele não era aquilo, aquilo não era ele. Aturdido, conclui: “existo, porém não sou”.
- Maldição!
Esse foi o primeiro pensamento que lhe saiu pela boca. Enquanto refletia tentando achar alguma explicação, caindo de questão em questão, como quem nada dentro de uma bolha, Astolfo não viu que uma garota pequena se aproximava de mansinho. Sem medo, ela o cumprimentou. Ele deu um salto para trás. “Afaste-te!”, bradou. Ela se aproximou. “Como te chamas?”, perguntou ela. “Não sei”, reticenciou o lobisomem. De pergunta em pergunta ele foi obrigado a explicar tudo: a lua cheia, a transformação, a lenda e, por último, a diferença circunstancial entre a razão e o instinto. Essa derradeira parte a pequena não entendeu muito bem, mas propôs levar o lobo para casa.
- Como?
Com uma coleira, ela iria conduzi-lo até chegar em casa. Secretamente, ele lhe sussurraria o caminho e ninguém iria perceber.
- Mas claro que perceberia! Eu não sou, nem de longe, um cachorro. Sou um lobisomem!
- Lembra um cachorro ...
- Um lobo!
- O lobo é um cachorro!
- É da família dos cachorros, mas não é um cachorro a priori.
- Se te ponho numa coleira vão pensar que és um cachorro.
- Mas sou grande e assustador ...
- Com a coleira e andando mansamente, te tomarão por um cachorro.
- Mesmo assim desconfiarão que uma menina, do teu tamanho, seja capaz de controlar os impulsos de um “cachorro” tão grande e feio.
- Ponho um óculos escuro, daí pensarão que sou cega e que tu és um cão bonzinho.
“Que ridículo”, resmungou Astolfo para si. Ele tinha lá seu orgulho, mas esse era o melhor plano. Ele mesmo pôs a coleira, tomando as rédeas da situação. Ela foi atrás de um óculos escuro. Pronto.  Seguiram rua abaixo e ninguém percebeu. Se agissem como cego e cão-guia nada iria acontecer de errado, por mais que o cachorro tivesse dois metros de altura, dentes de três polegadas e uma pelagem cinza horrível. Não malogrando tanto as aparências, não incomodando ninguém, passando incógnito por entre as pessoas, que mal tem? Se perguntassem “qual a raça?”, a menina diria: “nunca vi raça alguma”. Mas ninguém perguntou. Para todos os efeitos, aquele cachorro possuía os aspectos gerais de um cachorro e isso basta: as pessoas entendem sem precisarem, necessariamente, entender.
Todavia, quase terminando o trajeto, o plano degringolou. Astolfo começou a se transformar em homem. E que estranha imagem se viu... Era um ser humano, sem nada de errado fisicamente, mas... mas o que faz um sujeito nu em pelo, preso numa coleira, segurado por uma criança, ainda por cima, cega? Que espécie de pervertido é aquele? Astolfo congelou. Vislumbrou a face inquisitória de todos. Sentiu medo. Se pudesse colocar o rabo entre as perna, o faria, mas acabara de perdê-lo. Teve o impulso de correr e gritar. Geralmente, quem entrelaça a corrida ao grito, doido varrido é considerado, e ninguém com doido mexe. Porém, antes de fazer a menção de fugir, sentiu um puxão no pescoço.
- Quieto!
- Não adianta mais, menina ...
- Continue, nada mudou ...
Astolfo estagnou. De fato: nada havia mudado. As pessoas continuavam suas vidas, seguindo, andando, trabalhando, eternamente em gerúndio. Ninguém o via. Na verdade, nunca o viram, desde o princípio. Estava na sua frente a resposta do enigma de sua bizarra existência: sempre foi, desde o começo, produto da imaginação daquela guria. Ser homem era apenas o prelúdio e o epílogo da sua vida de lobisomem. Passava a maior parte do tempo como um bicho irracional, títere de uma fantasia extraída de algum conto de terror. Pobre diabo. O dia em que se descobriu existente, descobriu-se quimérico. Nunca possuiu uma vida de verdade. Mal tinha memória.  Era humano somente o tempo suficiente para virar lobisomem. Tudo o que lembrava estava resumido nesta sequência de imagens: ele passeando num bosque, em noite de lua cheia e, de repente, respiração, fome, pelo, mandíbula e uivo; em seguida, ele acordando, confuso, nu, sujo, um trapo de homem. Depois daí, mais nada.
- Vou-me embora ...
- Mas não chegaste em casa!
- Me recuso ...
- Mas ...
- Vou-me embora, já disse.
- Vais para onde?
- Vou para onde não me lembres.
- Volta! Amiguinho? Ei!
Astolfo deixou a menina. Na realidade, ele nunca esteve ali. Nunca tocou o solo do mundo, pois era apenas imaginação, algo mais insustentável que o vento. No fim das contas o que havia de fato ali era apenas uma menina arrastando uma coleira no chão, pensando haver um cachorro ali. Não vendo nenhum ser preso àquele objeto, nada mais fazia sentido. O ser animado e o objeto inanimado se separam, não mais havendo nenhum contexto que os unisse. A criança era apenas a criança. A coleira não passava de uma coleira.
A menina, de pronto, se sentiu ridícula. Pela primeira vez fora arrebatada pela vergonha. Na verdade, já tinha sentido vergonha, mas de forma diferente. Isso acontecia quando devia interagir com um adulto pela primeira vez. Sua mãe dizia “Menina, deixa de ser besta! Diga alguma coisa!”. Sem achar as palavras, ela abaixava a cabeça, encabulada, escondida em algum lugar entre o pescoço e o queixo. Quando Astolfo desapareceu, ela se viu de outro ângulo. Olhou-se como que de fora do próprio corpo. Não podia se esconder, pois estava, por ela mesma, achada. O resultado foi esse sentimento de vergonha, inédito até então. Não era mais sua mãe cobrando uma atitude de moça mais crescidinha: era a menina, ela-própria e, ao mesmo tempo, ela-outra, se olhando, externa de si, concluindo-se ridícula. E ela reparou, imediatamente, que outros também a observavam, concluindo-a de inúmeras formas. A menina, pois, concluída, largou a coleira no chão e voltou para casa correndo. Reza a lenda que virou adulta. De Astolfo ... De Astolfo mesmo, não se teve mais notícias.

13/10/2015
Igor Nascimento

Em Caduco ou Crônicas do Esquecimento

QUANDO MEU RELÓGIO PAROU


10:10, assinalando essas horas, o relógio da minha sala parou: faltou-lhe as baterias. Os ponteiros frisaram esse horário. Conservei-os assim, embora tal indicação temporal não tenha nada de especial para mim: não foi a hora em que nasci, tão pouco a hora de um compromisso, refeição ou hábito específico. “Num dia oportuno compro-lhe as pilhas”, nunca as comprei! Isentei-me do compromisso de fazer os minutos caminharem naquele cômodo. Quando chego, 10:10; quando saio, 10:10.  Ao dar 10:10 em todos os relógios que funcionam, o meu, sem funcionar, já marca a hora correta. Para que dar-lhe vida se, em determinado instante do dia, ele estará acertado sem qualquer esforço? Este relógio funciona perfeitamente - durante um minuto, pelo menos. Depois, às 10:11, se visto sob perspectiva horária, ele estará adiantado 11 horas e 59 minutos. Contemplado em sua anti-horariedade, ele estará atrasado 1 minuto. Para que pilhas? Durante 60 segundos, em dois momentos do dia, o tempo nasce e se põe na minha sala sem qualquer intervenção. Passados, aurora e crepúsculo, o relógio se torna apenas um objeto, como qualquer outro, através do qual o tempo passa, mas não fica. Os relógios onde o tempo permanece retido não prestam. Quer dizer: prestam, porém mecanicamente: marcam somente as horas que passam, não as horas que queimam.  


Em Caduco ou Crônicas do Esquecimento

Igor Nascimento

13/09/2015

DAS APARÊNCIAS EM POLIETILENO


      A rosa de plástico, no centro da mesa: é flor em aspecto e forma. Jamais morre, inorgânica matéria moldada e tingida. É assim: modelo, síntese-foto, pose-existência. Não envelhece – não pode. Se desbota ou entorta, se quebra. Não mais serve, joga-se fora. É feita para durar tanto tempo, e tempo não lhe é dado a morrer. Vinda de fábrica, perdeu o dom de fenecer. Daí não ser planta de verdade. As plantas sabem o momento em que devem voltar a ser terra. Se esquecem tal detalhe, tornam-se seres de plástico: vivos de mera aparência. 

Em "Caduco ou Crônicas do Esquecimento"


Igor Nascimento