CARAS DAS CHAGAS


Senhoras e Senhores, eis um échantillon do livro Caras Pretas que publicarei em breve. Aqui é a Cena do Balaio, Francisco das Chagas. 




FRANCISCO. Mulher... O que fazes aí? Essa porta .... Ela dá para onde? É a entrada de nossa casa? ...  Por que não entra? É nosso lar com nossa filha. A vida é dura e difícil, eu sei, mas a felicidade só depende do jeito com o qual você goza a vida ... Eu e tu ... A nossa menina ...  Como cresceu! Está tudo bem, Maria? Por que não respondes? Por acaso roubei teus verbos?
MARIA. Eu vou entrar. Já é tarde. Sugiro que volte depois. Não passe mais por aqui.
FRANCISCO. Ora! Essa é minha casa!
MARIA. Essa é a sua memória...
FRANCISCO. A casa do tempo ... Por que não entrar?
MARIA. Porque essa entrada dá para um abismo.
FRANCISCO. Dá para sala.

Maria gira o trinco

MARIA. Adeus...
FRANCISCO. Vou contigo...
MARIA. Eu suplico...
FRANCISCO. Eu imploro...

Maria abre a porta e entra. Francisco a segue e logo volta. Parece ter olhado algo horrendo. Seus olhos estão esgarçados. O que ele presenciou parece não caber nas órbitas de seu globo ocular.

FRANCISCO. Pegaram-na ... Dois lhe seguravam as pernas. Outro a prendia pelos braços. Maria ...  Desfizeram-te ... Quando mais gritava, mais eles te gastavam até a última sobra. Tua dor alimentava a fúria insaciável daqueles homens ... Por que fizeram isso? Por quê? Xô! Xô palavras! Por que sempre acham um nome para cada imagem que vem a minha mente! Não quero dizer isso ... O que é ter a mulher morta de uma forma tão brutal? É ser o menor de todos os homens! Eis o que sou: algo trincado. Quebrado, mas ainda inteiro. Desfeito, mas permanecido. Levaram tudo e a deixaram como resto e eu ... menos que resto: um nada obrigado a ser alguma coisa, obrigado a existir ... Um lastro de sangue inundou todo o ar da casa. O estropio da dor ainda reverbera nas paredes de cada cômodo! Ai! Filha minha. Que visão horrível é essa do corpo de uma criança morta. Tão leve e pesado ao mesmo tempo ... Carreguei nos braços minha filha esmaecida. Coloquei-a do lado na mãe e ... Fora daqui palavras malditas! Fiquem para lá daquela porta! Calem-se! Cessem por tudo que há de mais maldito e mais sagrado! Fora! (Ele começa a destruir tudo que vê pela frente com um facão) Saiam! Sumam! Eu prometo ... Eu prometo que vou matar um por um ... Matar com a pior morte possível . Ei de sufocá-los de dor. Amaldiçoados! Saiam! (Ele solta o facão e começa a se bater) Sai nome! Não te quero mais, Francisco! Some! Some tu daqui! Seu infame! Seu covarde! Vai-te embora! Vai-te embora! Te enterra com tua mulher, desgraçado! Te enterra, Francisco, com tua filha, seu porra! Porque eu ... Eu agora vou sair para caçada! Sou eu, agora, o Balaio! E onde eu pisar vão me chamar, escreve! Vão anunciar minha chegada com medo e pavor! Pois nenhum branco... Nenhum branco, me ouve Francisco! Nenhum branco terá o direito de esquecer de mim, porque teu drama, indigente, já foi esquecido. Enterra aqui tua história de homem, Francisco. Pois agora começa a saga do bicho!

CORO FORA DA CENA.
O Balaio chegou!
O Balaio entrou!
Cadê o branco?
Não há mais branco!
Não há mais sinhô!
Não há mais branco!
Não há mais sinhô!




Ilustração de Waldeir Brito


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