Um
drama ao público desavisado é um drama ao quadrado.
Apresentamos
mais uma vez “um dedo por um dente” na periferia de São Luis.
Não com esse olhar piedoso que lançam algumas
companhias de teatro rumos às margens,
Não com projetos que carregam mais uma justificativa do que uma meta,
Não com intuito de educar o cidadão a jogar lixo no lixo ou de não
poluir a água...
O que lançamos
assim, quase irresponsavelmente, foi um “drama do Absurdo”. Um texto carregado
de filosofia e... que precisa de muito trabalho para que cause alguma reação.
A apresentação
do último domingo foi um fiasco.
No meu canto,
senti o outro lado da tortura de fazer refém uma platéia durante quase sessenta
minutos...
O que
aconteceu? No galpão onde estávamos havia vários ventiladores e a voz dos
atores, ainda por cima, reverberava. O que se escutava era o texto moído pelas
paredes.
Nesse tempo,
operando a luz, percebi uma coisa: o que adianta toda uma concepção de cenário,
de figurino, de maquiagem, dramaturgia se, no canto da sala, tem uma menina que
balança a perna insistentemente querendo ir embora?
Como professor,
aprendi a perceber, de imediato, os sinais de inquietação das pessoas.
Um bater de pé
frenético contra chão me tira rapidamente do compasso.
Um bocejo
rasga meu pensamento em dois.
Passar uma
hora vendo uma platéia que não reagia foi um suplício chinês.
Mas, controlando
minhas convulsões e abrindo minha percepção, notei um detalhe terrível no
espetáculo que vem nos acompanhando desde as primeiras montagens e, só lá, fui me
dar conta.
Sem entender,
nem eu mesmo, o texto, observava os movimentos. Muitas partes, muitos gestos,
muito da movimentação estava solto. Tentava encaixá-los no contexto da obra,
tentava ver se eles comunicavam sem precisar do apelo da voz. Inútil...
O que sobrou
foi apenas aquilo que se via, já que o resto era abafado pelos ventiladores.
A imagem das
duas caveiras andando de um lado para outro sem muito norte.
E eis aí que
entra o detalhe perigoso: VESTIMOS A FIGURA DAS DUAS CAVEIRAS!
Explico-me:
Com as
armaduras que imitam ossos debaixo do figurino, com a maquiagem que imita o
crânio, fazemos os dois esqueletos, mexemos e nos movimentamos enquanto tal,
falamos com uma “vozinha” de esqueleto que lembra um pouco aquela do palhaço e esquecemos,
montados nesta armadura, que, antes das duas caveiras, existem dois personagens:
o Procópio e o Torquato.
Limitados a
uma partitura da imagem de dois esqueletos, e não nos personagens em si, perdemos
boa parte das nuances que poderíamos dar a cada fala, do jogo que poderia ser
feito com cenário e da movimentação que poderia ser mais detalhada.
O que
prevaleceu foi o caricatural em função do estrutural.
Fiquei
pensando nesses atores que se vestem de atores quando vão atuar. Alguns
contadores de história, por exemplo, tem sempre a mesma voz, a mesma
gesticulação que parece que foi feita para contar qualquer tipo de história.
Outros atores,
do pós-dramático, se vestem de atores pós-dramáticos e falam tudo com uma
entonação de quem está com raiva “Eu sou a miséria do mundo!” e condenasse o
público por não entender que “eu sou a miséria do mundo”.
Ambos esquecem
que a mensagem a ser entregue prepondera sob a imagem daquele que a diz. Não sei
se já repararam, mas quase todo ator de teatro de empresa tem o mesmo jogo: uma
mistura de palhaço com mensageiro da paz, de professor vestido de criança...
Indo mais
longe, certa vez, uma contadora de história da argentina Monica Chiesa fez uma
apresentação na Aliança Francesa. Tratava-se de uma história banal de uma bruxa
e de um gato... Ouvindo, com atenção, fui transportado e, quando terminou a contação,
eu me encontrava tão embasbacado quanto uma criança...
Fuçando um
pouco mais, me lembrei que certa vez ouvi outra contação de história que tinha
também uma fábula dessas banais e fiquei irritando pensando que a atriz me
tratava por um imbecil, falando compassadamente, gesticulando com obviedade e
abrindo demais os olhos como se perguntasse “está entendendo, menino?”.
Em suma, ela
estava mais preocupada em dizer que estava contando do que, de fato, contar,
envolver as pessoas com a história e não com as suas oficinas do diabo a quatro
e sua função como atriz na face da terra.
Tudo bem que,
para criança, tudo é magia, até certo ponto. Mas eu sou uma espécie infeliz de
público exigente. Não gostei daquela tarde de domingo, achei um nojo, não piso no
pátio daquela escola!
Voltando à peça,
o desafio da próxima apresentação de “Um dedo por um dente” é enxotar essas
duas imagens que atravancam a mensagem. Retirar estas armaduras, esta figura
que criamos de “como deve ser estes dois personagens” em detrimento de objetos
mais diretos: o que eles são (disso já sabemos) e como eles se resolvem na cena
(aí o bicho pega)
A questão é
continuar montando até conseguir acharmos uma consistência. Não que o
espetáculo tenha que ficar pronto, como um objeto imutável, mas é preciso que
alcancemos uma solidez mínima para ter o poder de moldá-lo conforme convir.
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