Chove muito. E por quê? Porque as
nuvens precisam desabafar. Flutuar é tarefa tediosa – se demanda toda uma
existência, todo um corpo. Rançosas, elas desabam. De cima, rosnam. Suas
intempéries forçam as pessoas a procurarem um teto: outro céu pra olhar. “Sai
daqui, vê se estou na esquina”, dizem.
Eu mesmo, fui foçado a sair do corpo no qual estava. Explico: pertenço
àquele senhor, logo ali, na parada de ônibus.
Não sou nem seu espírito, nem sua
alma. Não passo de seu esquecimento,
também flutuante, igualmente entediado.
Àquele
que está ali, logo ali, chamam de Osvaldo. Mas seu nome me fora, de data
recente, concedido. Delegaram a mim a tarefa de guardá-lo. Guardei.
Se esse nome existe, hoje, é na recordação de terceiros. Sempre tive
esse zelo em guardar essas lembranças. Isso desde da tenra infância de Osvaldo.
E eu me lembro ... Lembro de tudo. Ninguém se lembra de mais coisas do que o
esquecimento. Na verdade, a maior parte das memórias pertencem ao esquecimento:
dispensa escura das horas.
Com
um tempo, creio que de quatro anos para cá, me foi dado coisas demais para
guardar. Tenho isso de se organizado, sabe? Por mais que trabalhe sem muita
luz, tudo meu está em seu devido lugar. Às vezes, acontece do meu portador
resgatar algum flash perdido do
passado. Nesses lapsos, costumo fazer minhas exibições: “Eis aqui, conservada a
reminiscência, tão conservada que nem parece passado, tem cara de presente,
chega brilha”. As pessoas chamam isso de “lembrar do nada” (mal sabem do
trabalho que tenho). E quanta coisa bem guardada eu tinha! Imagens lindas, tão
lindas que duvida-se terem sido vividas de verdade. Porém, de um tempo para cá,
muita coisa me foi enviada. E um perfeccionista, como eu, assemelha-se a um
malabarista sem talento: eu consigo apenas fazer arte com objeto de cada vez –
dois, no máximo, mas com muito, muito, cuidado. Se me dão três objetos,
desmorono rápido. Ultimamente, deram-me muita coisa e lá, dentro da cabeça de
Osvaldo está uma bagunça, vou te dizer! ... Tive de ocupar outros espaços de
sua mente, só para teres uma noção. E tanta coisa entulhada me sufoca. Já ando
sem paciência. Mesmo minhas exibições não mais impressionam. A toda hora,
Osvaldo fala coisa com coisa, “lembra do nada”, mas tudo tão fora de hora, tudo
tão mal construído, empoeirado. Digo-lhes a causa: tentando ganhar espaço acabo
quebrando algumas lembranças. Outras são tão espremidas nos cantos que mudam de
forma: se boas, passas a ser ruim; se pretéritas, passam a ser inéditas ...
E
lá está ele, apático, entupido de tanto esquecimento. Tão lotado que nem se
mexe. Olha o nada, eis o seu passatempo. Nessa insistência em olhar o vazio,
até suas lembranças mais recentes eu tenho de estocar, uma após outra, sem
tempo para respirar. Confesso que simplesmente as jogo em qualquer canto. A
organização tornou-se um mito, uma deusa antiga, a quem cultuo quando me
arrumo. Olhe como estou: impecável, alinhado sacrosantamente. Tomei tuas roupas
de empréstimo, Osvaldo. Se se importas, as devolvo de já e pronto. Mas há muito
que não te lembras de teres vergonhas em estar nu. Sai a esmo na rua, pelado.
Essa chuva te convidou para dançar enquanto a todos ela convidava a se
esconder. Estás engraçado. Portas a nudez de um recém-nascido, pena nasceres
tão tarde. Quem tarde nasce mergulha de volta para terra, antes de ver o dia.
Tange as brechas do mundo, e volta para o mistérios do além, caindo no infinito
curso do indeterminado.
Foi-se o tempo Osvaldo! Foi-se! Não posso mais
te prestar meus serviços. Por isso decidi que é hora de nós dois aguardamos a
morte. Mas ela também ... Ela parece nos ter esquecido. Será? Talvez seja a
chuva. A chuva ... Chu-va: palavra que se molha sozinha.
Que coisa bonita...tem um poético suave. Jorgeana
ResponderExcluirA pena corre ligeira. Aqui e ali fura uma nuvem pesada, que escorre. Boniteza muita, poeta. As Rosas gostam...
ResponderExcluirA pena corre ligeira. Aqui e ali, perfuram uma nuvem, que escorre. Boniteza muita, poeta. As Rosas gostam.
ResponderExcluir