Era de manhã e Astolfo não
tinha voltado a ser homem. Ainda tinha
forma de lobisomem. Algo deu errado. Geralmente, depois dos acessos de lua
cheia, ele voltava ao normal. Em algum lugar, de repente, ele acordava, confuso,
nu e sujo; um trapo de homem, mas homem de carne e osso. Porém, ineditamente,
naquele dia fatídico, continuava bicho, e com um agravo: não sei por qual razão
ele se reconhecia como tal. Quando estava metamorfoseado, não tinha nenhuma
consciência. Saía de si. Possuído por não sei qual lunar torpor, era todo
respiração, fome, pelo, mandíbula e uivo. Porém, dessa vez, não foi assim. Era
de manhã e a luz do dia saturava de cores sua visão, habituada ao preto-branco
da noite. Os odores invadiam suas narinas e traziam o nome vapórico de tudo que
estava ao redor. Os ouvidos giravam, como parabólicas, captando o sinal de cada
objeto que se mexia, ali ou algures. Astolfo, extraordinariamente, raciocinava,
permanecendo, ainda, lobisomem. Pena acordar para razão no instante em que ela
não é capaz de explicar bulhufas. Ele não era aquilo, aquilo não era ele.
Aturdido, conclui: “existo, porém não sou”.
- Maldição!
Esse foi o primeiro
pensamento que lhe saiu pela boca. Enquanto refletia tentando achar alguma
explicação, caindo de questão em questão, como quem nada dentro de uma bolha,
Astolfo não viu que uma garota pequena se aproximava de mansinho. Sem medo, ela
o cumprimentou. Ele deu um salto para trás. “Afaste-te!”, bradou. Ela se
aproximou. “Como te chamas?”, perguntou ela. “Não sei”, reticenciou o
lobisomem. De pergunta em pergunta ele foi obrigado a explicar tudo: a lua
cheia, a transformação, a lenda e, por último, a diferença circunstancial entre
a razão e o instinto. Essa derradeira parte a pequena não entendeu muito bem,
mas propôs levar o lobo para casa.
- Como?
Com uma coleira, ela iria
conduzi-lo até chegar em casa. Secretamente, ele lhe sussurraria o caminho e
ninguém iria perceber.
- Mas claro que perceberia!
Eu não sou, nem de longe, um cachorro. Sou um lobisomem!
- Lembra um cachorro ...
- Um lobo!
- O lobo é um cachorro!
- É da família dos
cachorros, mas não é um cachorro a priori.
- Se te ponho numa coleira
vão pensar que és um cachorro.
- Mas sou grande e
assustador ...
- Com a coleira e andando mansamente,
te tomarão por um cachorro.
- Mesmo assim desconfiarão
que uma menina, do teu tamanho, seja capaz de controlar os impulsos de um
“cachorro” tão grande e feio.
- Ponho um óculos escuro,
daí pensarão que sou cega e que tu és um cão bonzinho.
“Que ridículo”, resmungou
Astolfo para si. Ele tinha lá seu orgulho, mas esse era o melhor plano. Ele mesmo
pôs a coleira, tomando as rédeas da situação. Ela foi atrás de um óculos escuro.
Pronto. Seguiram rua abaixo e ninguém
percebeu. Se agissem como cego e cão-guia nada iria acontecer de errado, por
mais que o cachorro tivesse dois metros de altura, dentes de três polegadas e
uma pelagem cinza horrível. Não malogrando tanto as aparências, não incomodando
ninguém, passando incógnito por entre as pessoas, que mal tem? Se perguntassem
“qual a raça?”, a menina diria: “nunca vi raça alguma”. Mas ninguém perguntou. Para
todos os efeitos, aquele cachorro possuía os aspectos gerais de um cachorro e
isso basta: as pessoas entendem sem precisarem, necessariamente, entender.
Todavia, quase terminando
o trajeto, o plano degringolou. Astolfo começou a se transformar em homem. E que
estranha imagem se viu... Era um ser humano, sem nada de errado fisicamente,
mas... mas o que faz um sujeito nu em pelo, preso numa coleira, segurado por
uma criança, ainda por cima, cega? Que espécie de pervertido é aquele? Astolfo
congelou. Vislumbrou a face inquisitória de todos. Sentiu medo. Se pudesse
colocar o rabo entre as perna, o faria, mas acabara de perdê-lo. Teve o impulso
de correr e gritar. Geralmente, quem entrelaça a corrida ao grito, doido
varrido é considerado, e ninguém com doido mexe. Porém, antes de fazer a menção
de fugir, sentiu um puxão no pescoço.
- Quieto!
- Não adianta mais, menina
...
- Continue, nada mudou ...
Astolfo estagnou. De fato:
nada havia mudado. As pessoas continuavam suas vidas, seguindo, andando,
trabalhando, eternamente em gerúndio. Ninguém o via. Na verdade, nunca o viram,
desde o princípio. Estava na sua frente a resposta do enigma de sua bizarra
existência: sempre foi, desde o começo, produto da imaginação daquela guria. Ser
homem era apenas o prelúdio e o epílogo da sua vida de lobisomem. Passava a
maior parte do tempo como um bicho irracional, títere de uma fantasia extraída
de algum conto de terror. Pobre diabo. O dia em que se descobriu existente,
descobriu-se quimérico. Nunca possuiu uma vida de verdade. Mal tinha
memória. Era humano somente o tempo
suficiente para virar lobisomem. Tudo o que lembrava estava resumido nesta
sequência de imagens: ele passeando num bosque, em noite de lua cheia e, de
repente, respiração, fome, pelo, mandíbula e uivo; em seguida, ele acordando,
confuso, nu, sujo, um trapo de homem. Depois daí, mais nada.
- Vou-me embora ...
- Mas não chegaste em
casa!
- Me recuso ...
- Mas ...
- Vou-me embora, já disse.
- Vais para onde?
- Vou para onde não me
lembres.
- Volta! Amiguinho? Ei!
Astolfo deixou a menina.
Na realidade, ele nunca esteve ali. Nunca tocou o solo do mundo, pois era apenas
imaginação, algo mais insustentável que o vento. No fim das contas o que havia
de fato ali era apenas uma menina arrastando uma coleira no chão, pensando
haver um cachorro ali. Não vendo nenhum ser preso àquele objeto, nada mais fazia
sentido. O ser animado e o objeto inanimado se separam, não mais havendo nenhum
contexto que os unisse. A criança era apenas a criança. A coleira não passava
de uma coleira.
A menina, de pronto, se
sentiu ridícula. Pela primeira vez fora arrebatada pela vergonha. Na verdade,
já tinha sentido vergonha, mas de forma diferente. Isso acontecia quando devia
interagir com um adulto pela primeira vez. Sua mãe dizia “Menina, deixa de ser
besta! Diga alguma coisa!”. Sem achar as palavras, ela abaixava a cabeça, encabulada,
escondida em algum lugar entre o pescoço e o queixo. Quando Astolfo
desapareceu, ela se viu de outro ângulo. Olhou-se como que de fora do próprio
corpo. Não podia se esconder, pois estava, por ela mesma, achada. O resultado
foi esse sentimento de vergonha, inédito até então. Não era mais sua mãe
cobrando uma atitude de moça mais crescidinha: era a menina, ela-própria e, ao
mesmo tempo, ela-outra, se olhando, externa de si, concluindo-se ridícula. E
ela reparou, imediatamente, que outros também a observavam, concluindo-a de
inúmeras formas. A menina, pois, concluída, largou a coleira no chão e voltou
para casa correndo. Reza a lenda que virou adulta. De Astolfo ... De Astolfo
mesmo, não se teve mais notícias.
13/10/2015
Igor
Nascimento
Em
Caduco ou Crônicas do Esquecimento
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