IRENE: DIA SIM, DIA NÃO


A morte de Irene caiu numa data qualquer, num dia de nada, sem festa, nome de herói nacional, santo católico ou tragédia memorável. Era uma quarta-feira e ela veio a óbito no meio da tarde... Lembro também que, nesse dia, nenhum evento mereceu destaque nos jornais. À parte os escândalos políticos em andamento - já sem tanta novidade ou alarde - ou aqueles crimes de sempre, dramas da rua e da vida que não são capazes de parar o trânsito ou cancelar os voos... O que de fato aconteceu de diferente a tudo isso foi o derradeiro suspiro de Irene. Porém, a morte dela se reportava apenas aos seus entes mais próximos. Para mim, sim, aquela foi uma ocasião com data fixada: tal fato aconteceu, em tal hora, em tal lugar, de tal jeito com consequências tais que o dia seguinte nunca acabou: nascia de alvor murcho, desaparecia em ocaso inerme. Sem diferença entre começo e fim era como ... era como se o tempo não achasse um presente para se assentar, sabe? Era como se as horas tropeçassem antes de marcar um horário específico... como se os minutos despencassem num abismo e seguissem em queda infinda sem nunca achar o chão, sem mais avançar, apenas caindo, caindo, caindo a esmo; e, à força de tanto cair, eles não saiam do lugar: sumiam nesse buraco que se abriu no dia em que Irene se foi...
Nesse intervalo, o passado ganhou vida própria. Gradativamente, ele tomou o espaço. Tudo estava encharcado de lembrança e na casa, liquefeita, eu não achava nenhum lugar para ficar. De todo canto brotavam gotas com a imagem dela. Molhavam o assoalho, infiltravam-se nas paredes, escorriam pelos os móveis. Eu tentava mergulhar nessas imagens, mas inútil: não se nada dentro de uma gota. A única coisa que cabe dentro de uma gota são as nossas visões... E eu estava no mesmo lugar, ilhado no mesmo dia. As datas passavam, sim, mas o dia era o mesmo, tenho certeza. Porém, quando o calendário veio parar em 17 de Outubro, algo diferente aconteceu: nessa precisa data Irene morre... A partida dela volta.  O tempo, em vez de avançar um dia, me retorna esse. E o dia seguinte ao 17 de Outubro é um amanhã intermitente que aguarda esse ontem se avultar, pois, desde que foi embora, Irene morre um dia sim e outro não.
Igor Nascimento
27/11/2015

Em Caduco ou Crônicas do Esquecimento

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